terça-feira, 10 de junho de 2014

Processo Cunhã Antã por Daiana de Moura


Cunhãs plantam brotinhos..
Como é estar em um processo que questiona tudo? O posicionamento das mulheres em relação ao trabalho; a questão do trabalho na arte; a questão da arte no trabalho; as atitudes e relações contemporâneas vistas com olhar do passado; questionamos a palavra, no mundo e no teatro; entramos em crise com as funções em coletivo e com a função de um coletivo, etc, etc, etc.
Cada encontro uma mudança. Cada ensaio uma transgressão do combinado. 
Cada combinado posto em jogo é observado minuciosamente e então desestabilizado.
O processo cunhã antã é assim. PROCESSO! É uma semente
Tudo o que aprendemos sobre como fazer teatro está sendo abalado, vibrando os contornos das coisas fechadas, herméticas, estabelecidas e seguidas. 
Como podemos suportar fazer todas as apresentações iguais se acordamos diferentes todos os dias?
O que me contempla neste momento é que estamos reinventando as formas de trabalho, nada mais honesto do que começar repensando as nossas formas de trabalho.
Como o Coletivo Cê trabalha? O que faz parte da memória deste jovem encontro? O que queremos semear para as memórias futuras?
Não sou uma máquina, não sou programada, não sou programável, nesse sentido participar desse processo tem um cunho extremamente humanista.
Somos seres humanos questionando o desumanidade que existe na ideia de trabalho. As hierarquias, os  abusos, a individualização e maquinização das pessoas. 
Movidos pelos relógios, máquinas, celulares e computadores nossos corpos encontraram aqui um espaço de ressonância. 
Trazemos para a cena o caos que é ser mulher, atriz em 2014. Ritualizamos o corpo-ovo feminino, para além da biologia, além do gênero, além do fator salvaguardar a espécie humana.
Plantamos nosso ovo cunhã buscando nesse ato plasmar as camadas de complexidade da vida.
Plantar um ovo implica observar as belezas, defrontar com as podridões, confrontar com os medos e as fragilidades que somos cada um de nós.
Hoje pensar nessas camadas de complexidades tem a ver com abraçar o caos. E assim fazemos.
Sem grandes definições, sem saber se é épico ou dramático. Sem narrativa linear. Sem saber o alcance da recepção do público, sem saber quanto tempo levará. 
Sem saber se teatro com performatividade ou performance com teatralidade.

Essa peça talvez nem seja uma peça, se entendemos como peça teatral um sistema fechado, repetível, controlado, dominado.
É uma experiência teatral compartilhada, um experimento. De gente que se experimenta sem pretensão de ter um ponto de chegada. 
Ou melhor tendo muitos pontos de chegada e decidindo o caminho no meio da viagem.

Somos gente que quer o irrepetível. 
Que cansou das repetições históricas e que acredita nas infinitas possibilidades e que infinitamente se transforma todos os dias.
Nosso barco já saiu, está no mar. Não derivamos porque sabemos quem somos e temos a concretude histórica do nosso corpo em movimento como bússola. 
Apenas navegamos, felizes pela liberdade que a arte nos proporciona. 
Assim voltamos a ter desejos de mudar o mundo, de parir coisa nova. Parir um brotinho.
Acreditando que o novo pode estar no velho, nos velhos amigos, nos velhos lugares, 
nos velhos amores, nos velhos encontros, nos velhos tempos.
O novo mora onde a gente encontra!
Nos pautamos na presença, no instante, real. É esse mar insano da linguagem teatral que nos faz presentes, vivos, nossa única possibilidade de existência.
E é esse instante, esse tempo que nos inquieta, que nos instiga. O tempo do encontro, do olho no olho, sem efeito e sem artificialismos ou superficialidades.
O tempo de plantar, de parir um brotinho (e o tempo de nascer uma plantinha que pode ser o que quiser).
Instante verdadeiro.
O que é possível num instante verdadeiro? Acredito que o amor é possível. O amor de Heich.
Quero o amor profundo do instante que no teatro ainda é possível.
O tempo do amor. O tempo do rito. O tempo como acontecimento
Ixe cunhã, ixe jaguara!
Eu como o tempo, e como o amor.
Picamos nossas cebolas, batatas, cozinhamos o feijão, o arroz (E assim dizemos que só o fazemos porque queremos fazê-lo).
E assim recriamos novos e velhos ritos e reinventamos nosso fazer.
Sem receitas, desmedindo mais mais.
Antropofagicamente comemos nossa sopa, comemos nosso trabalho, nos comemos de incessante busca.
Cozinhar a Sopa é metáfora para nosso processo.
Metáfora da nossa mestiçagem: nós mulheres sopas (indígenas, brancas, negras).
Misturadas, tecidas na rede histórico-cultural desse pais. Cada nó um ponto de convergência, cada espaço o abismo que separa as idiossincrasias de cada uma.

Esse texto se faz no momento em que todas essas informações se chocam, se atritam e se trituram no corpo-memória-pensamento de uma mulher.
E amanhã será transformado. E depois de amanhã revisto, e depois remexido, e depois questionado, e depois transcriado, e depois deve ir, e depois voltar, 
e depois ir e vir, depois desvirar, depois devir, devir...

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