quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A viagem do apanhador de desperdícios

por Fernanda Brito

O menino caminhava devagar, como que observando o tempo pegar carona no amarelo da tarde. 
Observar o rabo do cachorro espantando os mosquitos
Observar os mosquitos dançando em cima da goiaba, como que tivessem fundado um novo país, com comida em abundancia e felicidade minúscula e inteira.
Passava a vidas inteiras sentado na soleira da porta, observando a terra. 
E poetava.
Queria virar pedra, limo, coisa que vive escondida no oco do pau podre.
E existir devagar.
O menino Manoel hoje viu um cometa e veio se despedir.
Disse que tinha encontrado uma nova aventura perto de Deus e que ia ver se os bichos de lá contorciam que nem minhoca, e se as estrelas eram mesmo um monte de vagalume preso no veludo preto do céu.
Disse que queria estudar astronáutica, que queria olhar de perto o fim do dia, todo dia.
Queria desver a gente daqui pros outros de lá.
Eu nem tive tempo de pedir pra ele me dar um abraço, mas o menino Manoel é assim: Corisco. Quando se olha ele já foi.
Menino gauche. Ele nem sabia o que era isso, mas era isso mesmo. 
Eu fiquei aqui olhando a luz pela janela, quando ele agarrou o rabo do cometa que os homens foram explorar, ele foi quieto pra não chamar muita atenção pra si, que era coisa que tinha vergonha.
Ainda deu pra ver de longe ele agarrado no rabo do cometa. 
Aqui escorreu cachoeira de saudade adiantada. Mas prometi pra ele que ia continuar o que ele começou, prometi olhar os abandonos de frente, e juntar na minha canastrinha de tesouros tudo o que eu desver.
Obrigada Menino Manoel. Vai pra junto de Deus fazer festa no ouvido dos anjinhos e passar a mão na bunda do vento lá onde ele nasce. A gente fica e vai tentando desver esse mundo doido-torto.
Manoel de Barros se encantou na porta da manhã desse dia 13 de novembro
 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

cunhãntã, derivas e amanhãs...



Hoje eu me reviro viro reviro
Hoje é dia de me revirar
Do avesso
Do meu avesso
Já não consigo desvirar
Respiro e pinto coisas outras pra me revirar
Pra me deitar ao sol
Pra me contar
Pra costurar minha tarde
Para me acostumar
E me revirar
Para me acostumar
E me revirar
Eu me conto segredos no meu avesso
Eu me conto pra mim eu me conto eu conto eu conto
Eu conto o que não conta canto todo canto do meu peito tem o perfume de uma vontade de amanhã morno ao sol de um fim de tarde
Tem vontade de sono de descanso de correr ao fim da rua ensurdecida pelo riso de uma criança
Sorriso alcança a boca arranha os dentes atrita os ossos
Ossos do meu ofício que é ofício de criar
De revirar
De amar cada instante com esse fervor que assola o meu peito nos dias em que me reviro
Eu já não consigo compor palavras por palavras que são máquinas que só querem escrever sentidos sem pensar nas palavras todas elas tão bonitas potentes para o nada
Eu vomito vomito vomito palavras mas meu vômito é uma flor
Florzinha que brota tímida de inquietude
Peito aberto ao horizonte
Respiro que revira e revirar que é respiro
Meu caminho já é meu
meu caminho é meu
meu caminho.
meu caminho me pertence
me pertence o meu caminho
que não pertence a ninguém
nem a mim
porque é caminho
caminha
esse caminhar
que não tem fim
início
vida fluída
eu tenho essa liquidez
de cada dia acordar líquida e vestir a roupa que me amarra no dia na cadeira na frente do computador desfazendo pétalas fechando o riso esparramado pela minha voz eu não sou eu não sou eu não sou eu. não. sou. eu.
eu amo tanto tanto tanto a vida que já não poderia amar mais amarras amarras amarras amarás? Do futuro eu também não sei porque ele é costura do agora e no agora eu flutuo como alguém que tateia o solo que está descobrindo no mesmo instante em que pisa
cheirinho de terra molhada
final de tarde na beira do lago
fecho os olhos e já foi o amor...
sou líquida que liquida o agora o amor
eu sinto culpa
sinto.
só.
só de completude
que se incompleta
no instante
que é
E já é
E ainda é
Esgoto e gosto de esgotar o gosto por qualquer coisa que se desfaz...
Desfalecer...
No meu peito a agonia do agora da vida de cunhã parir os brotinhos de amanhã
Eu quero caçar o amor
a paz
a felicidade
o final de tarde
o caos do meu pensamento
e soltar...
captura e soltura...
para que cada coisa seja
no instante que é.

eu
sono
sonho
sopro
de
vida
e
amanhã.

Tatiana Plens

terça-feira, 10 de junho de 2014

Processo Cunhã Antã por Daiana de Moura


Cunhãs plantam brotinhos..
Como é estar em um processo que questiona tudo? O posicionamento das mulheres em relação ao trabalho; a questão do trabalho na arte; a questão da arte no trabalho; as atitudes e relações contemporâneas vistas com olhar do passado; questionamos a palavra, no mundo e no teatro; entramos em crise com as funções em coletivo e com a função de um coletivo, etc, etc, etc.
Cada encontro uma mudança. Cada ensaio uma transgressão do combinado. 
Cada combinado posto em jogo é observado minuciosamente e então desestabilizado.
O processo cunhã antã é assim. PROCESSO! É uma semente
Tudo o que aprendemos sobre como fazer teatro está sendo abalado, vibrando os contornos das coisas fechadas, herméticas, estabelecidas e seguidas. 
Como podemos suportar fazer todas as apresentações iguais se acordamos diferentes todos os dias?
O que me contempla neste momento é que estamos reinventando as formas de trabalho, nada mais honesto do que começar repensando as nossas formas de trabalho.
Como o Coletivo Cê trabalha? O que faz parte da memória deste jovem encontro? O que queremos semear para as memórias futuras?
Não sou uma máquina, não sou programada, não sou programável, nesse sentido participar desse processo tem um cunho extremamente humanista.
Somos seres humanos questionando o desumanidade que existe na ideia de trabalho. As hierarquias, os  abusos, a individualização e maquinização das pessoas. 
Movidos pelos relógios, máquinas, celulares e computadores nossos corpos encontraram aqui um espaço de ressonância. 
Trazemos para a cena o caos que é ser mulher, atriz em 2014. Ritualizamos o corpo-ovo feminino, para além da biologia, além do gênero, além do fator salvaguardar a espécie humana.
Plantamos nosso ovo cunhã buscando nesse ato plasmar as camadas de complexidade da vida.
Plantar um ovo implica observar as belezas, defrontar com as podridões, confrontar com os medos e as fragilidades que somos cada um de nós.
Hoje pensar nessas camadas de complexidades tem a ver com abraçar o caos. E assim fazemos.
Sem grandes definições, sem saber se é épico ou dramático. Sem narrativa linear. Sem saber o alcance da recepção do público, sem saber quanto tempo levará. 
Sem saber se teatro com performatividade ou performance com teatralidade.

Essa peça talvez nem seja uma peça, se entendemos como peça teatral um sistema fechado, repetível, controlado, dominado.
É uma experiência teatral compartilhada, um experimento. De gente que se experimenta sem pretensão de ter um ponto de chegada. 
Ou melhor tendo muitos pontos de chegada e decidindo o caminho no meio da viagem.

Somos gente que quer o irrepetível. 
Que cansou das repetições históricas e que acredita nas infinitas possibilidades e que infinitamente se transforma todos os dias.
Nosso barco já saiu, está no mar. Não derivamos porque sabemos quem somos e temos a concretude histórica do nosso corpo em movimento como bússola. 
Apenas navegamos, felizes pela liberdade que a arte nos proporciona. 
Assim voltamos a ter desejos de mudar o mundo, de parir coisa nova. Parir um brotinho.
Acreditando que o novo pode estar no velho, nos velhos amigos, nos velhos lugares, 
nos velhos amores, nos velhos encontros, nos velhos tempos.
O novo mora onde a gente encontra!
Nos pautamos na presença, no instante, real. É esse mar insano da linguagem teatral que nos faz presentes, vivos, nossa única possibilidade de existência.
E é esse instante, esse tempo que nos inquieta, que nos instiga. O tempo do encontro, do olho no olho, sem efeito e sem artificialismos ou superficialidades.
O tempo de plantar, de parir um brotinho (e o tempo de nascer uma plantinha que pode ser o que quiser).
Instante verdadeiro.
O que é possível num instante verdadeiro? Acredito que o amor é possível. O amor de Heich.
Quero o amor profundo do instante que no teatro ainda é possível.
O tempo do amor. O tempo do rito. O tempo como acontecimento
Ixe cunhã, ixe jaguara!
Eu como o tempo, e como o amor.
Picamos nossas cebolas, batatas, cozinhamos o feijão, o arroz (E assim dizemos que só o fazemos porque queremos fazê-lo).
E assim recriamos novos e velhos ritos e reinventamos nosso fazer.
Sem receitas, desmedindo mais mais.
Antropofagicamente comemos nossa sopa, comemos nosso trabalho, nos comemos de incessante busca.
Cozinhar a Sopa é metáfora para nosso processo.
Metáfora da nossa mestiçagem: nós mulheres sopas (indígenas, brancas, negras).
Misturadas, tecidas na rede histórico-cultural desse pais. Cada nó um ponto de convergência, cada espaço o abismo que separa as idiossincrasias de cada uma.

Esse texto se faz no momento em que todas essas informações se chocam, se atritam e se trituram no corpo-memória-pensamento de uma mulher.
E amanhã será transformado. E depois de amanhã revisto, e depois remexido, e depois questionado, e depois transcriado, e depois deve ir, e depois voltar, 
e depois ir e vir, depois desvirar, depois devir, devir...

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Corações generosos rogai pelas almas esquecidas e abandonadas.

Araçoiaba- verão 2014

"Sou um apanhador de desperdícios
Amo os restos
como as boas moscas"

Tenho em mim um atraso de nascença , gosto imensamente de me desperdiçar em abandonos.
Não me interessam espelhos e prédios.
Prefiro a simplicidade e os silêncios . Prefiro os deveres dos amadores. Rogo pela simplicidade do Bispo do Rosário. Por isso me permiti catalogar com os olhos aquilo que gostaria de enviar para Jesus. Eu soube que Ele, como eu, preferia o simples e abandonado.
Olhei Dona Anitta Schikeira, sua morada eterna enfeitada de duas rosas que foram vermelhas.
Vi que a cidade existe menos na paz dos cemitérios.
Vi uma casa de azulejo azul com mato verde vistoso balançando de leve, a vida resistindo o silêncio.
Uma roseira nasceu na casa do seu Ângelo e do seu Chico. E nas pétalas moram seus beijos de saudades. Eu vi.
Vi uma casa endurecida pelo abandono de cruz fincada no chão. Sisuda. Dona Anildina.
Dona Esther gostava de caju, sei disso porque ela me deixou ver um pézinho plantado num vaso, bem em cima da sua morada.
Conheci Dona Lúcia, habitante dos próprios abandonos, soterrada de abandonos alheios e apaixonada por eles desde moça. Sua casa passageira, vizinha das moradas eternas, grita vermelha em meio ao silêncio. Mas por dentro o mesmo silêncio mora nos seus pedaços.
Seu sonho, como o meu, é ser dona de abandonos. E não mexer. Deixar que eles existam e existir devagar com eles.
Isso foi o que eu vi. E peço desculpa pelo que eu deixei escapar.
E rogo a graça de um dia poder me abandonar, como o mato que cresce por entre os vãos do chão. E respirar livre o ar da existência plena.

Por Fernanda Brito