segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O menino que carregava água na peneira.

















Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que escrever seria

o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro

botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.

Até fez uma pedra dar flor!

A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:

Meu filho você vai ser poeta.

Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os

vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos.

Manoel de Barros

*Foto Fabricio Vianna- @fabriciovianna

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O menino ouve meu recado...

Fotos tiradas na segunda temporada de "Desterro"pelo fotógrafo Sorocabano Fabricio Vianna @fabriciovianna.




























































quinta-feira, 15 de julho de 2010

A MEIO-CAMINHO

POSTADO POR MICHEL VALVERDE http://daimonfilosofico.blogspot.com/

Partir e chegar, chegar e partir... Estar em algum lugar, e ao mesmo tempo viver o não-lugar. A partida traz no seu deslocamento as minúcias de uma vida, a nostalgia da despedida e a saudade dos momentos que fizeram valer a pena cada minuto do passado. E isso não é privilégio de ninguém, tampouco castigo para os desafortunados. Trata-se da mais comum e fatal aventura do homem: o exílio para o desconhecido. Inserido nessa dinâmica intransponível, ele conta com a memória, forte aliada contra a solidão e o desamparo.

Percorrendo esse universo, fatual e onírico, o espetáculo Desterro, do Coletivo Cê, apresenta a história e a lembrança de um jovem, cuja angústia pela vida perdida faz com que rememore, entre os anos decorridos do seu caminhar, os episódios mais importantes, causa de inspiração e pesar, e os embates de maior repercussão interior. O grupo sorocabano exibe no Casarão da CPFL (espaço da encenação) o suceder de vínculos e interrogações de um sujeito a procura de si próprio nas coisas, pessoas e afetos que participaram das etapas de sua vida.

Concebido como espetáculo itinerante, o público – não mais de vinte e cinco pessoas – é conduzido por alguns cômodos e pelo pátio, donde aprecia as cenas que formam o quebra-cabeça do consciente do protagonista, o jovem nômade. O elenco, bastante comprometido com o seu trabalho, alterna personagens e compõe também o coro musical que entremeia os blocos de representação. Em cena, o jovem se confronta com a alegoria do tempo, personificada como a memória que o introduz e retira ininterruptamente pelas entranhas da sua psique atormentada, sentida igualmente nos detalhes cenográficos e atmosféricos, propostos por uma iluminação parva e desfocada. Os objetos escolhidos, com características rústicas e bucólicas, traduzem com sucesso o anseio do protagonista de retornar ao local de segurança.

No fundo de tudo, a travessia pelas estações resididas (o café com a mãe, a colheita de mangas, a visita ao prostíbulo) remete à procura incessante pela identidade, princípio de toda atitude libertária, e a insistente recorrência aos fatos de outrora apenas ilustra o quanto essa lacuna urge em ser preenchida. Freud, em um de seus escritos, menciona a existência do sentimento “oceânico”, espécie de estado de plenitude que remete ao ilimitado, infinito, e tal é a expectativa de completude levantada pelo desdobrar das ações cênicas. Será possível alcançar a plena realização humana? Talvez essa condição eminente exija abdicações na mesma proporção das aquisições, e no limiar da falta e do acúmulo esteja o ponto de recomeço que lance cada indivíduo para horizontes mais promissores. Se pôr errante, e não ficar no meio do caminho, entre lamentações e culpa – eis uma inferência interessante de considerar.

Desterro cumpre com perícia a proposta de despertar nos espectadores a mesma busca do jovem protagonista: a tentativa de se ver pela própria história e de olhar para a distância vindoura, com coragem e desprendimento das amarras da alma, postas pelas fugas e decisões mal assimiladas. Prestigiar esse espetáculo é ter a decência de se enxergar num espelho e desafiar-se a rememorar quem se é, distinguindo as resoluções inevitáveis e as gaiolas das quais se pode e não se pode fugir.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Sobre Memória, Ambiente e Estado

por Clayton Leme

“É no sistema ambiente que
encontramos todo o necessário
para trocas entre sistemas,
desde energia até cultura,conhecimento,
afetividade, tolerância, etc...”
Vieira, 2006.




Uma noite tipicamente de outono, onde a pele fica mais sensível aos sopros dos ventos, aos balanços das árvores e das torres de energia que buscam a firmeza e a concretude da sanidade, tempo em que os corpos iniciam sua busca do calor que aconchega, muitas vezes, encontrado na proximidade do/com o outro. Foi mais ou menos assim que me percebi na noite do dia 10 de Abril de 2010, data em que meus sentidos subiram às pontas dos pés para tentar enxergar um tempo/espaço deslocado de mim.
A vivência produzida pelo Coletivo Cê, aqui prefiro me referir como um espaço de vivência, compartilhamento e não a um espetáculo. Não por desmerecer a obra artística, mas para explicitar algo que transcende a relação espetacular, trata-se praticamente de uma viagem no tempo, de uma máquina orgânica de atualizações de memórias, espaço de revisitação de tramas e tecidos que vão sendo reconstituídos passo a passo, onde me sinto privilegiado de me perceber contemplado.
O texto/cheiro que se organiza na boca do estômago nos leva à estados de oscilação entre quem somos, o que fomos e o que seremos, construindo relações de verticalização da percepção de corpo/memória no tempo/espaço. Nos remete à uma inércia produtiva, ambiente preciso, na medida certa de quereres de permanência no estado de embriaguês da vida.
Beber a vida não é tarefa fácil e muito menos perceptível ao longo de nossa caminhada pela maioria da população, privilegiando uma minoria que chega a se dar o luxo de perceber o sopro e as lambidas do vento na pele. Os estados corporais propostos nesse trabalho são propostos como ambiências que se alternam na tarefa de conduzir os sentidos a reorganização e estabelecimento de um novo equilíbrio, na relação dentro/fora/dentro/fora...
“...ô minino!!!...” jargão que permeia e dança na boca de todos os intérpretes nos leva a compreender que é possível a reinvenção da palavra como corpo pronunciado e expandido no espaço. Os intérpretes são referenciais de si mesmos e não de uma personagem que busca interpretar uma idéia, mas de alguém que constrói e apresenta uma ou mais possibilidades de ação/pensamento de/no mundo.
Os estados corporais, objeto de pesquisa e possível caminho de chegada ao objetivo do coletivo, se apresentam com fortes indicações de maturidade na lida da pesquisa que se dá no modo como a pele está presente na ação. Articula a diversidade individual e a individualidade da diversidade, tarefa desafiadora de construção de complexidade.
A memória se articula com a lógica de funcionamento das sinapses no cérebro, o que me faz recordar ainda a imagem de Michelangelo, proposta como provocação, no encontro de Deus com o homem, os dedos delicadamente quase chegam a se tocar, e, nesse quase toque é que os convidados da noite, embalados pelo sopro do vento são levados à conexão sináptica com a obra, como se um delicado e sutil fio de energia os mantivessem conectados, formando uma grande teia de informações e de trocas constantes.
Os sons, cheiros, imagens, toques e sabores do ambiente nos convidam à atualizações de nossos modos de agir e de se perceber no mundo, construindo outras lógicas das relações humanas. Isso demonstra a maturidade com que o grupo vem construindo um conceito particular e de certa forma universal sobre o que é ser um coletivo, algo que se dá no exercício diário, alternando e fortalecendo os pontos que devem ser energizados, respeitando e compreendendo que para ser um coletivo é necessário o ser indivíduo que é diverso e que contempla uma parte do diverso universo do todo. Que bebamos a vida!!


Votorantim, 10 de Abril de 2010.

quarta-feira, 24 de março de 2010

"DESTERRO" Casarão da CPFL vira palco e quintal de espetáculo teatral.



Por FERNANDA MOLLER, pesquisadora com iniciação científica apoiada pelo CNPq com o titulo "Reflexões acerca do papel do espaço cênico na construção das relações espetaculares pós dramáticas"

"Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas.”
(texto de Manoel de Barros utilizado na dramaturgia do espetáculo “Desterro”)

Ao abrir as portas do espaço de ensaio e de construção cênica do espetáculo “Desterro”, o Coletivo Cê nos deixa ver um belíssimo Casarão, talvez não muito conhecido por todos os espectadores, situado na parte central de Sorocaba.
O Casarão antigo da CPFL praticamente não foi alterado pelo grupo, poucos são os acessórios cênicos que ressignificam o espaço. Contudo, ali, no encontro com outros espectadores, no perfume do café que traz lembranças das tardes com broa de fubá, nas brincadeiras de criança, nas cantigas populares que deixam saudade e na lua gigante que aponta no céu transformando o cenário cotidiano em cenário espetacular, podemos perceber juntos um espaço que não é mais da cidade e nem do grupo, é nosso, ganhamos assim nosso quintal.
A partir daí, a história do menino/homem interpretado por Hércules Soares se confunde também com nossas memórias (a memória, aliás, se personifica no espetáculo, interpretada de maneira doce e instigante pela atriz Eliane Ribeiro). Somos conduzidos, sempre pelo menino, por vários cômodos do Casarão e em cada um deles conseguimos perceber um fragmento da história do protagonista.
Num jogo de intimidade e estranhamento, o grupo brinca com imagens, olhares, iluminação e sabores. Através deste jogo, identificamo-nos ora como a mãe, fincada na terra, igual árvore, vendo o filho partir, e ora como passarinho que não consegue mais ficar dentro da gaiola, precisa voar.
Com leveza e astúcia, Janaina Silva parece flutuar através de suas palavras, compondo a dramaturgia do espetáculo. O texto é nitidamente fruto de grande pesquisa e sensibilidade, o que parece ser mérito não apenas da dramaturga como de todo elenco (a julgar pelo livro de registros do grupo).
Entre tantos acertos do Coletivo Cê, é necessário comentar a atuação de Fernanda Brito, presenteando os espectadores com uma performance corporal e vocal precisa e encantadora, a jovem atriz atrai todas as atenções ao teu canto, deixando em evidência também o trabalho habilidoso e talentoso de Júlio Mello (diretor do espetáculo) e de Melany Kern (preparadora corporal).
Por tudo isso, o nosso quintal, aquele que foi construído pelos atuantes do grupo, mas que é, durante a representação, compartilhado com os espectadores, se torna maior do que a cidade que o rodeia, se torna maior que os quintais que tentam reproduzir tão inutilmente esta cidade. É maior porque tem intimidade, e como adultos, que um dia tiveram que abandonar seu lugar de origem levando consigo as lembranças eternas, sabemos que é “pela intimidade que se mede o tamanho das coisas”.
“Desterro” é um espetáculo que deve ser prestigiado por aqueles que acham que a arte deve ter alguma função maior do que apenas divertir, por aqueles que têm lembranças e passado, e por aqueles que desejam assistir a algo realizado com muito bom gosto.

Serviço:"Desterro", de 20/02 a 11/04
Sábados às 20h e Domingos às 19h
Ingressos: Pague Quanto Puder
Local: Casarão da CPFL (Rua Dr. Ubaldino do Amaral, 202, Centro, Sorocaba-SP)
Info: (15) 88149882 e (15) 91121644

*foto por Tatina Plens

terça-feira, 16 de março de 2010

Crítica Desterro Ingrid Koudela 07/03/10








DESTERRO do COLETIVO CÊ
por Ingrid Koudela


Estréia no Casarão da CPFL, primeiro edifício a fornecer energia elétrica para a cidade de Sorocaba, construído em 1915, o espetáculo DESTERRO.

A arquitetura do prédio, transformada agora em espaço cultural pelo COLETIVO CÊ dá luz à memória afetiva e social da cidade. O espectador é mobilizado pelos personagens herdados do tempo, fantasmas de outros tempos que evocam pessoas, objetos, acontecimentos passados naqueles cômodos. A exploração cênica dos vários ambientes visitados pela encenação conduz o espectador, realizando uma viagem no túnel do tempo. A empresa CPFL que cedeu o espaço torna assim viva a memória que só o teatro pode realizar. A iniciativa da LINC sorocabana merece elogios ao apoiar projetos de qualidade como DESTERRO e outros tantos que pudemos acompanhar nos últimos anos.

A dramaturgia recheada de cheiros da infância, brincadeiras, músicas, sensações e histórias dos avós, desejos e medos remotos de Janaina Silva e a direção segura de Julio Melo lideram as competências destes jovens atuantes sorocabanos, em sua grande maioria com formação universitária em teatro na UNISO. As contradições entre o passado/futuro, da criança/jovem que parte em busca de novos horizontes demonstram a partida necessária que simboliza a saída da casa paterna, o crescimento do menino e a saudade da identidade que permanecerá.

Através de um elenco de primeira grandeza, o encontro do personagem-menino de Hércules Soares emociona na sua relação sincera com as atrizes-mulheres. A figura da mãe, incorporada por Giuliana Abona traz desde a primeira cena no café da manhã o ambiente interiorano, invocando traços de Guimarães Rosa na linguagem e na construção da cena que traz os primeiros afetos do menino.

Eliane Ribeiro realiza um belíssimo trabalho ao alegorizar a personagem memória através de seus dotes com o teatro de animação. O canarinho na gaiola ao qual dá vida com movimentos de uma das mãos é inesquecível! Sua figura faz o comentário das cenas e conduz a platéia de vinte e cinco pessoas, publico admitido a cada noite em que se realiza o espetáculo.

O coro, interpretado por Mariana Alves, Andressa Machado, Giuliana Abona e Fernanda Brito canta invocando o tempo pretérito e a trajetória do menino desterrado da casa paterna. A bela voz de Fernanda Brito lidera o coro das putas assombrando com sua interpretação madura e brincalhona. A paisagem sonora dos cânticos toca o coração e a saudade. O temor pelo futuro do menino é presente e compartilhado pela platéia permanecendo uma interrogação...

Há espetáculos em que se ressaltam qualidades estas ou aquelas. Em DESTERRO a maior qualidade é o processo orgânico do Coletivo Cê que resulta em um espetáculo no qual as partes compõem um espetáculo genial!

quarta-feira, 10 de março de 2010

Memórias. Um casarão. Canções populares.

Você já viu essa cena?

Se você aprecia com assiduidade a contemporânea produção teatral, sim! Você já viu essa cena!

Então, por que ver "Desterro"?


Desterro é um município do estado da Paraíba, mas é também sinônimo de exílio (de "tirar da terra"). Numa expressão mais livre, dá pra pensar em um desenterrar lembranças: do amor de infância à mãe querida, que está presa à terra e, essa talvez seja a imagem-metáfora mais bela em cena, protagonizada pela atuação doce de Giuliana Abona.

O texto poético e rico em imagens é de Janaína Silva, a Jana, e em um tempo em que a "onda" é eliminar o texto, fugir do drama, dá prazer escutar palavras tão bem escritas. E para desafiar uma dramaturgia tão forte, Fernanda Brito surge com sua interpretação segura. Brinca com as palavras e entonações. Deixa de ser a garota do tambor.

A história se desenvolve a partir das lembranças do personagem de Hércules Soares, responsável por uma passagem de tempo nada clichê. Já Mariana Alves entra em cena forçando o "caipirês", mas, aos poucos, vai cativando a plateia.

A peça é permeada por intervenções do coro, formado pelas atrizes já citadas e por Andressa Machado, que também é responsável pela venda de ingressos. Estamos em um Coletivo!

Particularmente, não sinto necessidade do coro. Não vejo nele uma característica social, ou de reflexão de um personagem, que justifique sua utilização. A personagem de Eliane Ribeiro dá conta desse aspecto. Ela fala por todos. Por todos nós!

A direção, aliada e integrada às propostas de encenação do Coletivo Cê, é a grande surpresa. Júlio Mello amarra situações e imagens como poucos. Cria ambientes que dialogam com o espaço (um casarão antigo da CPFL) e com uma iluminação acertada. A sutileza toma conta do espetáculo, como em uma passagem em que a luz vem de fora e entra por uma fresta de uma porta.

O espetáculo além de tocante, sensível, impressiona pela riqueza do texto, pelas interpretações apaixonadas, pela utilização perfeita do espaço, pelas escolhas e, principalmente, pela estética. E é por ela que você deve ver "Desterro".

Patricia

Serviço:

"Desterro", de 20/02 a 11/04

Sábados às 20h e Domingos às 19h

Local: Casarão da CPFL (Rua Dr. Ubaldino do Amaral, 202, Centro, Sorocaba-SP)

Info: (15) 88149882 e (15) 91121644

*foto por Tatiana Plens

sábado, 6 de março de 2010

Desterro 28/02/10

Doçura para mostrar o desterro que nos assola.
Para nós e todos os meninos que ficaram.
28 de Fevereiro de 2010.

O trabalho “Desterro” que o Coletivo Cê apresenta no Casarão da CPFL trouxe essencialmente doçura ao vasculhar nossas lembranças em busca de preciosidades. E as encontra. O encontro nos faz rememorar nossas famílias, história e lugares num estranho embebedar-se nostálgico.
Me parece um bom exercício se pensamos que a memória focaliza coisas específicas, requer grande quantidade de energia mental e deteriora-se com a idade. O exercício que o coletivo nos propõe serve primeiro para lembrar. Talvez para mantermo-nos funcionando, lembrando.
O elenco talentoso tem na interpretação de Hércules Soares um crescente emocionante, fresco, nada clichê e que realça ainda mais traços de menino que irá alçar vôo como um grande ator. Somos tomados por surpresas femininas a cada instante, meninas mulheres que se misturam e procuram em corpos tão jovens essências profundamente marcantes e cheias do tempo. Os cantos promovem o retorno de infâncias repletas de cantigas e cânticos capazes de encher o vazio com mais vazio e assim permitir que nos emocionemos num sobressalto.
Eliane Ribeiro tem a responsabilidade quase sui generis de corporificar a própria memória e o faz com um corpo que se movimenta com complexidade e maturidade. Andressa Machado deixa o corpo pueril em casa e empresta-se para uma interpretação ousada. Possivelmente o ápice fica por conta de Fernanda Brito que ferve nossas sensações num assombro tocando, movendo-se e cantando de forma agressiva e eficiente. Quando juntam-se Mariana Alves e Giuliana Abona às lindas vozes, espalha-se por cômodos, corredores e pátios uma arquitetura sonora que nos oferece profundidade e distanciamento. Ora num pátio com vento, céu e estrelas ora num porão apertado e borbulhando de energia deste elenco tão jovem e corajoso.
O Casarão da CPFL construído em 1915 carrega em cada ambiente força suficiente herdado do tempo para compor com sua arquitetura o manuscrito exato que o espetáculo necessita para dar luz ao turbilhão de memórias que se apresenta. A gente se pergunta o tempo todo o que aconteceu ali, quais pessoas e objetos ocuparam aqueles cômodos?
A Empresa CPFL acerta no apoio oferecendo o espaço que é revitalizado a todo instante com arte de qualidade e bom gosto, tomara o apoio se estenda e extrapole a cessão gentil de espaço e tome um caminho freqüente de apoio institucional e financeiro para artistas da cidade.
Todo o trabalho tem sua essência evidenciada com o magistral textode Janaína Silva e a direção de Julio Mello que como o elenco, jovem, demonstra competência no manuseio de gente, espaço e ideias para a construção de algo delicado e consistente.
A experiência de cada noite vista somente por 25 pessoas que escolhem quanto querem pagar é realmente uma sofisticação no relacionamento do público, espaço alternativo e obra de arte. Um salto em qualidade na estrutura de projetos aprovados pela LINC Sorocaba.
Projeto que merece ser observado, degustado e apoiado. Parabéns Coletivo Cê pela ousadia em ser bom e presentear-nos com algo emoldurado em doçura.


Marcelo Proença
Artista do Corpo.