quarta-feira, 29 de junho de 2011

Rua Scuvero, 287

Porta que só abre para o natal e varanda pra guardar pó. Cada casa tem a sua história e a gente vira tudo de ponta cabeça... abrindo portas, transportando camas, levando o armário antigo a despencar portão a fora, juntando tudo tudo tudo em um quarto e uma cozinha. Tudo reluzindo vida e ganhando novas formas... De repente a gente não tá ali pra dar som para aqueles pisos e paredes, mas pra pedir licença, pra incorporar uma vida toda ali dentro... pulsante, viva e simples, de coração aberto e mente tranquila.
Seu Lourenço e Dona Laudeci, nomes perfeitamente bonitos para um texto e extremamente vivos na nossa mente, pela presença, pelo auxílio e por todo o carinho que nos deixou de coração quente.

Eu aprendi que o convívio é breve e a cada dia ganha um pedacinho a mais pra guardar. É como uma caixinha que a gente começa a construir e não acaba mais. E nem poderia acabar. A gente vai deixando música, sorriso e bagunça e vai mudando a rua. Meus quatro dias inteiros ganharam ar de importância quando veio a vizinha me contar que a gente tinha mudado a rua. E quando aqueles vizinhos todos vinham me perguntar o que acontecia e achavam que era bonito ter teatro ali na rua.

No meio disso tudo, eu só podia dizer mas tchê, mas bah, depois de tantas conversas com os gaúchos, e que tem gente que bota a mão na massa pra ajudar, nem que seja pra quebrar a cabeça com a luz, ou pra iluminar uma manhã-quase-tarde com belas conversas (afinal o dia só tardeia quando a gente come). Botei cor no mundo depois que tudo se foi com palavras. E é dessas magias que a gente faz. Mas quem tem o dom, de verdade, coloca o medo pra brincar de coragem e abre as portas do seu existir pra nos deixar ser um pouco da vibração daquela casa. E a gente só agradece. De forma bonita e singela. E com um adeus, que sempre esperamos ser breve.


"Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores."


Manoel de Barros


Texto e foto: Tatiana Plens

Um comentário: